A correr pelas cordas de uma guitarra



Os últimos dois anos não foram fáceis, os próximos dois prometem tudo menos facilidades. Hoje deram-me uma, facilidade... Um amigo meu ofereceu-me um bilhete para um concerto que eu queria muito ir. E eu fui.


Tenho a sorte de ter amigos que me oferecem o que eu preciso, quando eu preciso. No outro dia tinha-me praticamente despedido de concertos e farra numa bela noite de Linda Martini. Nessa noite, por circunstâncias da vida, à guitarra estava o Rui Carvalho, autor do projecto Filho da Mãe e pareceu uma despedida boa de uns tempos duros para mim pessoalmente, reerguer-me, e mais uma vez reinventar-me.


Estou aqui a escrever por isso, porque a reinvenção nunca é fácil, e eu já vou em algumas reinvenções, mas hoje começa, hoje corro, hoje parto.


O concerto de hoje, com que eu já não contava, foi uma catarse dos últimos dois anos, para mim, para o Rui, e para muitas das pessoas que foram ao concerto na Culturgest. Eu precisava, pela despedida rápida e inusitada, um choro de alma, o Rui também precisava. 


A história desta noite podia ter sido outra.


A sair de casa, esqueci-me de qualquer coisa, voltei, a minha Kikinha levou-me ao metro, porque ela é uma das sortes da minha vida, e porque queria estar comigo mais um pouco, não porque a distância é muita (já disse que tenho sorte). Levou-me ao metro e eu lá fui, sozinho agora, a ouvir música. No cais, uma mensagem passava repetidamente no placar de anúncios do Metro "linha amarela com problemas de circulação". Não liguei. Cheguei ao Marquês para ir buscar a linha amarela, que precisava para me deixar perto da Culturgest, e faltavam 40 segundos para o metro chegar, o anúncio das perturbações na linha amarela continuava, eu não liguei. Os 40 segundos passaram a 20 minutos então liguei, prestei atenção ao anúncio em que se podia ler "avaria de um comboio entre estação AR e EV2, (não eram estas as siglas, não me lembro quais eram), pedimos desculpa pelo incómodo, poderá levar algum tempo a resolver". Poderá levar algum tempo a resolver? Faltavam 15 minutos para as 21h, hora do concerto começar. Liguei.


Apanhei um comboio para a Praça de Espanha e dali uma trotinete para a Culturgest. Uma trotinete especialmente lenta, tão especialmente lenta que tive de dar ao pé, a minha cabeça ia a correr mais rápido ao lado da trotinete, e se a minha forma fosse antiga, seria mesmo isso que faria, abandonaria a trotinete e voava de pés pela Avenida Berna fora. COnsciente da minha limitação física lá continuei, a dar com o pé, e a trotinete cada vez mais lenta, eu cada vez mais atrasado, os prédios parados a observar o movimento, passei a Gulbenkian, a trotinete mais lenta, passei a Universidade nova, a trotinete mais lenta, quase a chegar à Cinco de Outubro, e já só dava o meu pé, era um skate, tinha ficado sem bateria, a merda a trotinete ficou sem bateria! Da Cinco de Outubro até à Culturgest ainda é um passinho. Corri.


Os prédios já não estavam tão parados quando eu olhei para cima e por pouco não fui atropelado por uma bicicleta, os tempos mudaram na minha cidade, o meu bicho urbano precisa de mais cuidado com as novidades, fui insultado por uma mulher "CUidado oh esperto!" Um dos cantos de um dos prédios mais altos à entrada da Avenida da República insultou-me pior, "Cuidado oh filha da puta! Ainda vais morrer e aí é que não chego a tempo de certeza." Corri.


Passei o Chimarrão, que acho que já não é um CHimarrão, será que foi ao ar com a pandemia? Passei a defensores de Chaves, e não me sentia especialmente cansado, mas as minhas pernas lá se iam queixando. Cheguei à Culturgest, peguei no telemóvel que os bilhetes estão todos lá, vi uma mensagem "A sua viagem terminou automaticamente, a bateria da sua trotinete esgotou-se", ainda a apanhar o folego tive tempo para insultar o meu telemóvel "Cabr..." e ouvir à minha frente "A sala vai fechar", não insultei o rapaz, disse só "A linha amarela..." Ele não estava interessado. Corri.

Entrei na sala esbaforido, encontrei os meus amigos e o resto foi ouvir o Filho da Mãe a correr pelas cordas da guitarra. Incrível. Foi incrível.



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